sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A INSTAURAÇÃO DA ARTE E OS MODOS DO DISCURSO



A hierarquia dos objetos
 Texto extraído do livro : O que é Arte, de Jorge Coli

Obra de Louco

A arte instala-se em nosso mundo por meio do aparato cultural que envolve os objetos: o dicurso, o local, as atitudes de admiração, etc.
Veremos mais adiante como esses instrumentos e a própria noção de arte são específicos de nossa cultura. Por ora, limitemo-nos a constatar que eles permitem a manifestação do objeto artístico ou, mais ainda, dão ao objeto o estatuto de arte: a galeria permite que o pintor exponha seus quadros (isto é, que "manifeste" sua arte) e, além disso, determina,escolhendo um tipo de objeto dentre os inúmeros que nos rodeiam, que ele seja "artístico".
Mas esses instrumentos não se limitam a traçar uma linha divisória separando os objetos artísticos e os não artísticos; não se contentam emcriar uma "reserva" de arte. Eles intervêm, por assim dizer, na disposição relativa dos objetos artísticos; pretendem ensinar-nos que tal obra tem mais interesse que outra, que tal livro ou filme é melhor que outro, que tal sinfonia é mais admirável que outra: isto é, criam uma hierarquia dos
objetos artísticos. Não é preciso muito conhecimento para sabermos que Dante é"maior"ou "superior" a Casimiro de Abreu, que Benedito Calixto é "inferior" a Leonardo, que Bach é o maior de todos osmúsicos, que o Partenon é a mais perfeita obra arquitetural, pois trata-sede julgamentos correntes, que parecem óbvios ou tácitos.Isto não quer dizer que tais objetos sejam mais "arte" que outros.Certo crítico poderá afirmar que Benedito Calixto não produziu obras de arte, mas estará empregando apenas uma hipérbole. Sabemos que Calixtofoi pintor, que produziu quadros e painéis, que exerceu uma atividade artística. Portanto, quando o crítico nega o caráter artístico de sua produção, está dizendo que, segundo seus critérios de julgamento, a qualidade da obra de Calixto não atinge um nível suficientemente elevado para que possa considerá-la como uma obra de arte. Mas,tomando duas obras tidas como artísticas, o crítico pode afirmar que,segundo certos critérios (que podem ser explícitos ou não), tal obra émais bem realizada, ou mais rica, ou mais profunda que outra.A crítica, portanto, tem o poder não só de atribuir o estatuto de artea um objeto, mas de o classificar numa ordem de excelências, segundo critérios próprios. Existe mesmo uma noção em nossa cultura, que
designa a posição máxima de uma obra de arte nessa ordem: o conceitode obra-prima.Esta noção é antiga, e ela não possuía exatamente o sentido que assumiu com o tempo. Os dicionários nos dirão que obra-prima é a obra perfeita, a obra capital, a produção mais alta de um autor. Se consideramos que Os Lusíadas são uma obra perfeita, que a Ilíada é uma obra capital, que o Ateneu é a melhor obra de Pompéia, diremos que nos três casos estamos diante de obras-primas da literatura. Porrazões ligeiramente diferentes: Os Lusíadas podem não ser essenciais, por exemplo, para a cultura de um americano, na Ilíada talvez encontremos irregularidades de construção, dizemos que O Ateneu é a obra-prima de um autor, Pompéia; mas nos três casos estamos diante de obras de qualidade que julgamos excepcional em relação a outras.No passado, entretanto, a obra-prima era aquela que coroava oaprendizado de um ofício, que testemunhava a competência de seu autor.Não se tratava de uma realização forçosamente inovadora, original, e era com frequência um produto utilitário, saído das mãos de um carpinteiro,ourives, tecelão. Os ofícios, exercidos em ateliês (isto acontece aproximadamente a partir do século XIV), constituíam um sistema não apenas de produção e de distribuição de objetos, mas também de ensino. O ateliê tinha um mestre, dono o mais das vezes da matéria-prima e dos instrumentos de fabricação, que ensinava aos aprendizes. Estes começavam crianças e adquiriam todas as técnicas necessárias ao ofício.Os ateliês agrupavam-se em corporações que os protegiam e estabeleciam regras precisas: por exemplo, que o proprietário de um ateliê fosse obrigatoriamente um mestre. E, para que o aprendiz setornasse mestre, devia apresentar em concurso, a outros mestres da corporação, uma obra inteiramente de sua autoria, que pudesse ser considerada perfeita, demonstrando assim um domínio de todas as técnicas necessárias: era a obra prima. Dessa origem, que se liga a condições de produção específicas, a expressão se generaliza no sentido de denominar a melhor obra, o produto mais perfeito no campo das artes. São muitas as diferenças, que não podemos abordar agora, entre o emprego originário e o atual. Ressaltemos uma, que nos interessa: a obra prima, no passado, era julgada a partir de critérios precisos de fabricação, por artesãos que dominavam perfeitamente as técnicas necessárias. Hoje, os profissionais do discurso sobre a arte possuem critérios mais diversos e menos precisos em seus julgamentos, critérios que não são apenas o do saber fazer.

Os caminhos do discurso

Se um carpinteiro aprecia a qualidade de um móvel, ele o faz a partir de um saber concreto, digamos, quase indiscutível. Verificará a qualidade da madeira empregada, a sua adequação à forma que se exige dela,verá se os elementos que constituem os pés, os braços, o encosto de uma cadeira foram bem talhados e ajustados. Admirará uma proeza
qualquer de feitura — por exemplo, a solidez da cadeira repousando sobre pernas delgadas —, a fineza do entalhe e a delicadeza dos ornamentos. No fazer que ele conhece, encontra os critérios para julgar o fazer de outrem.O crítico, entretanto, não tem recurso à objetividade do puro domínio técnico. Sabemos que a pintura de Leonardo, de Watteau ou Prud'hon são "mal feitas", que o material e as técnicas empregadas, por desleixo ou vontade experimental, não são adequados, que certos pigmentos não poderiam ter entrado em contacto entre si, que a execução foi apressada e não esperou a camada inferior secar para dispor, sobre ela, a camada seguinte, que se
abusou do betume nas sombras. E, finalmente, que o produto uma vez acabado envelheceu mal, escurecendo ou transformando as tonalidades originais, destruindo o desenho primitivo. Mas não são esses os fatores que interessam ao juízo do crítico. A Santa Ceia, quase em ruína, o São João Batista invadido pelas sombras não fazem de Leonardo um mau pintor. O bom conhecimento da perspectiva, da anatomia, da aplicação de luz e sombra são técnicas de um mesmo nível que o manuseio das tintas, pois são aprendidas segundo regras e podem ser julgadas com um forte grau de objetividade. Mas elas são um meio entre outros para a construção de um quadro e não são, nem podem ser, uma exigência absoluta. Ninguém pensaria em condenar Ingres pelo seu desdém pela anatomia, nem Uccello por sua perspectiva pouco ortodoxa, nem
Botticelli pela ausência de modelado em suas obras. Podemos dizer que certo pintor conhece perfeitamente a anatomia, mas com isso estamos elogiando apenas um aspecto técnico parcial de sua obra. Os discursos que determinam o estatuto da arte e o valor de umobjeto artístico são de outra natureza, mais complexa, mais arbitrária que o julgamento puramente técnico. São tantos os fatores em jogo e tão diversos, que cada discurso pode tomar seu caminho. Questão de afinidade entre a cultura do crítico e a do artista, de coincidências (ou não) com os problemas tratados, de conhecimento mais ou menos profundo da questão e mil outros elementos que podem entrar em cena para determinar tal ou qual preferência. Dirá um que Wagner é compositor desmedido ou de prolixidade vazia, outro invocará seu gênio harmônico a serviço de uma dramaticidade filosófica, etc. A situação é algo embaraçosa: vimos os fatores exteriores instaurando a arte em nossa cultura, vimos que eles determinam a hierarquia dos objetos artísticos, e nos deparamos com divergências de critérios que nos deixam confusos. Poderíamos tentar uma saída para o impasse buscando uma solução estatística: se não há unanimidade, talvez haja maioria. E, com efeito, pelo menos em certos casos mais notáveis, essa maioria parece manifestar-se com alguma solidez: é raro encontrarmos textos que desqualifiquem Cézanne, por exemplo,Eisenstein, Shakespeare ou Mozart. Eles existem, sem dúvida, mas um consenso geral valoriza extremamente a obra desses artistas.Temos que nos desenganar, no entanto. Não somente porque, quando se trata de obras mais polêmicas, que não conquistaram a institucionalidade do consenso, as disputas mantêm-se acerbas (qual é o interesse de Gounod ou Massenet? Grande, dizem os anglo-saxões; nenhum, respondem os franceses; Le Brun pode ser um artista admirável ou apenas gerar tédio; Blake um doido ou um iluminado genial), mas
também porque esse consenso não é estável, ele evoluí na história. Sem dúvida, Cézanne é tido hoje em dia como um dos maiores nomes da pintura de todos os tempos. Porém, não podemos esquecer que o reconhecimento do seu valor foi tardio: enquanto viveu, o consenso geral recusou-se a julgá-lo positivamente, e esse também foi o caso de Van Gogh, de Gauguin e dos impressionistas — pintores de uma época em que havia justamente um conflito entre os critérios estabelecidos e a obra que eles produziam. Poderíamos pensar que somos hoje mais aptos a perceber o valor deles, que nossa sensibilidade é mais aberta a Van Gogh e a Cézanne que a do público de seu tempo, e teríamos razão. Seria entretanto abusivo acreditar que o nosso juízo de hoje determina o reconhecimento definitivo de Cézanne e Van Gogh. A crítica, amanhã, poderá nos mostrar que estávamos enganados, e que o interesse dessa pintura, afinal de contas, não era assim tão grande. Absurdo? Rafael e Fídias são dois pilares da história da arte.Inúmeras gerações de artistas se referiram a eles como mestres. Não obstante, no começo de nosso século foram assimilados a uma arte convencional, a modelos de escola, a patronos do "academicismo" e viram sua estabilidade de grandes gênios abalada; ao "convencionalismo" que representavam preferiu-se uma arte mais conforme ao espírito de inovação do tempo, um "primitivismo" mais espontâneo: exalta-se, por exemplo, Uccello e a escultura arcaica. Foi preciso esperar algum tempo para que, novamente, eles se reerguessem como faróis, embora certamente menos incontestados do que antes. Os casos de Guido Reni e do Corrégio são mais radicais. Foram pintores de celebridade imensa, indiscutível, de influência decisiva durante séculos, tão admirados quanto Michelangelo, Rafael, Leonardo, e não se pode dizer deles que tenham conhecido apenas fama passageira. No entanto, hoje sofrem um eclipse brutal. Nossa época parece interessar-se tão pouco pela ternura do sublime mestre de Parma ou pelo rigor de Guido, que quantos somos capazes de lembrar sequer um de seus quadros? Melhor, a quantos esses nomes dizem alguma coisa? Poderíamos multiplicar os exemplos: sabemos que o passado que foi tão severo com os impressionistas mostrou-se profundamente generoso com pintores como Meissonier, Gervex, Puvis de Chavannes, Chaplin ou Alma Tademma. A morte de Meissonier, por exemplo, causou luto nacional na França. Com o tempo, no entanto, a avaliação crítica inverteu-se e esses pintores, que se opunham aos impressionistas como técnica e assunto, deixaram de ser exaltados. A condenação da posteridade chegou a tal ponto que se tornou difícil ver um quadro deles em museus. Estes, quando possuíam algum, escondiam-no envergonhados nas reservas. Durante muito tempo, essa pintura foi considerada como o próprio exemplo da não arte, como alguma coisa. Artisticamente irrecuperável. Ora, há questão de dez ou quinze anos, começou a sua reabilitação triunfal. Hoje descobrimos nela uma técnica admirável, um imaginário surpreendentemente rico, por vezes um erotismo extravagante e desmedido. E inversamente, começam a despontar análises restritivas a Renoir, a Monet. Em certos casos, são setores inteiros da arte que passam por purgatórios do mesmo gênero. As catedrais góticas que tanto admiramos hoje, a escultura, os vitrais e a pintura da Idade Média, foram execradas pelos homens da Renascença e dos séculos seguintes, até que os românticos e alguns teóricos do século passado, como Viollet-le-Duc, interessaram-se por eles e demonstraram seu valor. O barroco, o maneirismo, o art nouveau, o neoclassicismo, entre outros grandes movimentos da história da arte, conheceram trajetórias de forte oscilação entre o interesse e o desprezo. São tantas as flutuações no tempo dos vários juízos sobre as artes, tantos os meandros traçados pelo que os italianos chamam de fortuna critica, isto é, pelos julgamentos da posteridade, que não sabemos mais a que nos ater. Por vezes, uma obra, um autor, parecem inabaláveis, como Homero, e eis que um grande nome da cultura, como Valéry ou Gide, traduzindo uma corrente de opinião, surge para afirmar que a Ilíada é insuportavelmente insuportavelmente entediante. Com estes exemplos, colhidos um pouco ao acaso, já podemos chegar a uma constatação deprimente: a autoridade institucional do discurso competente é forte, mas inconstante e contraditória, e não nos permite segurança no interior do universo das artes.

Um comentário:

  1. Universo das artes dar total liberdade de usarmos de um discurso onde:hoje não é arte, amanhá quem sabe?!
    Esse texto meu caro jeferson willis veio com o propósito de mostrar a riqueza e uma gama de discursos existentes sobre as artes.
    Na realidade esse texto é um contraponto com relação ao seu texto anterior.

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